sexta-feira, 4 de setembro de 2009

O imigrante

- Por favor, eu preciso de uma bebida forte! – pediu-me, assustado, Pedro.
Era em torno das vinte horas do sábado. Pedro ainda portava as roupas que eram utilizadas no trabalho em obras. Seu olhar visivelmente esgotado denunciava que algo havia acontecido. Os cantores da noite apenas experimentavam o som para o show que aconteceria um pouco mais tarde. O movimento do Café me permitia dispensar maior atenção aos clientes.
Providenciei-lhe um uísque duplo, enquanto ele se acomodava em um dos bancos disponíveis no estabelecimento. Dessa vez, não escolhera uma mesa. Estava sozinho. Sem hesitar, deu dois grandes goles à bebida e devolveu o copo já vazio ao balcão.
- Quase que eu desço hoje! – disse-me em um tom apavorado.
Ele estava referindo-se ao Brasil. A posição geográfica de cada País era sempre relacionada às noções de descer ou subir no mapa mundial. Logo, partindo-se da Bélgica para a América do Sul, descia-se.
- O que aconteceu? – perguntei-lhe já imaginando o que poderia ter sido.

Geralmente os trabalhadores braçais deixavam suas casas por volta das cinco horas da manhã, para aguardarem, em um ponto preestabelecido, o motorista responsável por conduzi-los às obras. Na maioria das vezes, trabalhavam em construções fora da cidade para evitarem os controles que eram constantes em Bruxelas. Nesses casos, levavam-se horas para chegar ao destino. Como atrasos não eram tolerados, era necessário levantar bem cedo para estar, à hora combinada, nos respectivos locais de trabalho.
Faziam cerca de oito a dez horas no batente, sendo que alguns chegavam a atingir até quatorze,
quinze horas de serviço por dia. O controle do tempo era exercido tanto pelos empregados, que assinavam sempre horário de entrada e saída, quanto pelo empregador, que supervisionava a veracidade das informações prestadas.
Invariavelmente, os recém-chegados ao País passavam por uma fase não muito animadora. Como o ofício exigia certa habilidade com maquinários e apresentava diferenças cruciais em relação à construção brasileira, muitos se viam obrigados a trabalhar gratuitamente, ou, na melhor das hipóteses, receberem um ordenado irrisório até adquirirem alguma experiência na área.
A história de Pedro também se primava por esse começo. Entretanto, com o passar dos anos, havia conquistado certa estabilidade e seu meio de sobrevivência atingido um reconhecimento maior. Não percebia uma fortuna em euros, mas tinha consciência que no Brasil, sobretudo sem estudos, não conseguiria alcançar sequer trinta por cento do ordenado que recebia ali, sobretudo, exercendo o labor em construções.
A obra que estava agora a construir aproximava-se de Liège. Localizada em uma zona rodeada por mata verde e distante do ritmo frenético da cidade, tratava-se de um grande hotel levantado por dezenas de empregados, dentre eles, vários imigrantes ilegais.
Diferentemente dos habituais dias de construção, assim que chegaram e vestiram as roupas apropriadas para o trabalho, ouviram o barulho de vários veículos a se aproximarem do local. Depois disso, as horas que se passaram foram infindáveis minutos de muito sofrimento e desespero. Quando puderam identificar as viaturas da polícia a despontarem já bem próximo à edificação, o que se viu foi a triste imagem de vários homens a embrenharem-se mata a dentro, como se verdadeiros criminosos fossem, em um esforço crucial de não serem apanhados trabalhando ilegalmente naquele País. Deixaram tudo para trás: equipamentos de trabalho, telefones celulares e outros pertences.
De imediato, a polícia foi dividida em dois grupos. Parte permaneceu no local a conferir a documentação da obra e dos empregados que ali continuaram, seja por possuírem visto de trabalho ou por não terem logrado êxito na tentativa de fuga, e outra parte pôs-se a perseguir aqueles que se aventuraram por aquela mata fechada. Pedro era um deles. Não poderia se deixar agarrar. Muitas pessoas no Brasil dependiam daquele valor que, embora pequeno, invariavelmente, era despachado todos os meses a sua família.
Enquanto se ouvia os passos apressados dos policiais e dos cães que ladravam ferozmente à caça dos imigrantes, estes lutavam com todas as forças para não se deixarem abater pelo cansaço e pela fome que já começava a despontar.
As horas passavam e os policiais não desistiam. Muitos trabalhadores não resistiram à caçada humana que se seguiu e foram capturados como verdadeiros bandidos em flagrante delito. Por sorte e muita resistência, Pedro teve sucesso em sua desesperadora escapada.
Com a ausência do sol para informar se o dia estava ou não terminando, decidiu abandonar a mata quando não se ouvia mais qualquer ruído, fosse dos policiais, dos cães ou até mesmo do cantar de algum pássaro. Faminto e sem alternativa, pôs-se a andar em busca do caminho de volta à obra. Depois de algum tempo a peregrinar, conseguiu chegar ao seu destino final.
A construção estava vazia. Bruxelas encontrava-se distante dali aproximadamente setenta quilômetros. Andar pela rodovia seria um ato de loucura. Todo seu esforço teria sido em vão. Aguardar até o amanhecer seria duvidoso. Era sábado, e o domingo, geralmente, tratava-se de dia de descanso, mesmo para os imigrantes. Ademais, quando aconteciam controles naquela proporção, raramente os trabalhadores voltavam no dia seguinte.
Olhou para o céu e, em prantos, lembrou-se da existência de Deus. Humilde, pediu-LHE ajuda. Tentando não permitir que mais uma vez o desespero se fizesse maior, começou a procurar qualquer possibilidade que o tirasse dali. Encontrou um telefone celular. Agradecido, entrou em contato com seu patrão que se prontificou a buscá-lo em poucos minutos. Somente percebeu quanto tempo ali passara quando teve ocasião de verificar o relógio. Ficara escondido na mata, sem nada comer ou beber durante mais de dez horas seguidas. Mesmo assim não possuía qualquer intenção em desistir. Estava ciente que aquela situação poderia acontecer. Estava resignado a passar por tudo aquilo novamente, se necessário fosse. O que lhe importava era que ao final de cada mês, remetia ao seu País, ainda que de grão em grão, um valor que lhe possibilitaria usufruir de uma vida melhor futuramente.
Servi-lhe mais um uísque duplo e sugeri-lhe que fosse a casa tomar um banho, alimentar-se, esquecer o acontecido e voltar para se divertir ao lado dos muitos amigos que ele já havia feito em Bruxelas. Prontamente aceitou minha sugestão.
Com a aparência um pouco melhor, voltou algumas horas depois, onde pôde constatar a presença de imigrantes que também tiveram êxito naquela escapada crucial. Com eles, traziam notícias dos outros que não tinham mais a oportunidade de estarem ali. No que se referia aos brasileiros, se tivessem sorte, em poucos dias estariam pisando o solo do Brasil. Os procedimentos que permitiam a permanência destes na Bélgica raramente eram aplicados aos que eram encontrados trabalhando em situação ilegal.